O DESENVOLVIMENTO HUMANO NA TEORIA DE PIAGET
Márcia Regina Terra*
Apresentação
O estudo do desenvolvimento do ser humano constitui
uma área do conhecimento da Psicologia cujas proposições nucleares
concentram-se no esforço de compreender o homem em todos os seus aspectos,
englobando fases desde o nascimento até o seu mais completo grau de maturidade
e estabilidade. Tal esforço, conforme mostra a linha evolutiva da
Psicologia, tem culminado na elaboração de várias teorias que procuram
reconstituir, a partir de diferentes metodologias e pontos de vistas, as
condições de produção da representação do mundo e de suas vinculações com as
visões de mundo e de homem dominantes em cada momento histórico da sociedade.
Dentre essas teorias, a de Jean Piaget (1896-1980),
que é a referência deste nosso trabalho, não foge à regra, na medida em que ela
busca, como as demais, compreender o desenvolvimento do ser humano. No entanto,
ela se destaca de outras pelo seu caráter inovador quando introduz uma
'terceira visão' representada pela linha interacionista que constitui
uma tentativa de integrar as posições dicotômicas de duas tendências teóricas
que permeiam a Psicologia em geral - o materialismo mecanicista e o idealismo -
ambas marcadas pelo antagonismo inconciliável de seus postulados que separam de
forma estanque o físico e o psíquico.
Um outro ponto importante a ser considerado,
segundo estudiosos, é o de que o modelo piagetiano prima pelo rigor
científico de sua produção, ampla e consistente ao longo de 70 anos, que trouxe
contribuições práticas importantes, principalmente, ao campo da Educação -
muito embora, curiosamente aliás, a intenção de Piaget não tenha propriamente
incluído a idéia de formular uma teoria específica de aprendizagem (La Taille,
1992; Rappaport, 1981; Furtado et. al.,1999; Coll, 1992; etc.).
O propósito do nosso estudo, portanto, é tecer
algumas considerações referidas ao eixo principal em torno do qual giram as
concepções do método psicogenético de Piaget, o qual, segundo Coll e Gillièron
(1987:30), tem como objetivo "compreender como o sujeito se constitui
enquanto sujeito cognitivo, elaborador de conhecimentos válidos", conforme
procuraremos discutir na seqüência deste trabalho.
1)
A visão
interacionista de Piaget: a relação de interdependência entre o homem e o
objeto do conhecimento
Introduzindo uma terceira visão teórica
representada pela linha interacionista, as idéias de Piaget contrapõem-se,
conforme mencionamos mais acima, às visões de duas correntes antagônicas
e inconciliáveis que permeiam a Psicologia em geral: o objetivismo e o
subjetivismo. Ambas as correntes são derivadas de duas grandes vertentes da
Filosofia (o idealismo e o materialismo mecanicista) que, por sua vez, são herdadas
do dualismo radical de Descartes que propôs a separação estanque entre corpo e
alma, id est, entre físico e psíquico. Assim sendo, a Psicologia
objetivista, privilegia o dado externo, afirmando que todo conhecimento provém
da experiência; e a Psicologia subjetivista, em contraste, calcada no substrato
psíquico, entende que todo conhecimento é anterior à experiência, reconhecendo,
portanto, a primazia do sujeito sobre o objeto (Freitas, 2000:63).
Considerando insuficientes essas duas posições para
explicar o processo evolutivo da filogenia humana, Piaget formula o conceito de
epigênese, argumentando que "o conhecimento não procede nem da experiência
única dos objetos nem de uma programação inata pré-formada no sujeito, mas de
construções sucessivas com elaborações constantes de estruturas novas"
(Piaget, 1976 apud Freitas 2000:64). Quer dizer, o processo evolutivo da
filogenia humana tem uma origem biológica que é ativada pela ação e interação
do organismo com o meio ambiente - físico e social - que o rodeia (Coll, 1992;
La Taille, 1992, 2003; Freitas, 2000; etc.), significando entender com
isso que as formas primitivas da mente, biologicamente constituídas, são
reorganizadas pela psique socializada, ou seja, existe uma relação de
interdependência entre o sujeito conhecedor e o objeto a conhecer.
Esse processo, por sua vez, se efetua através
de um mecanismo auto-regulatório que consiste no processo de equilíbração
progressiva do organismo com o meio em que o indivíduo está inserido, como
procuraremos expor em seguida.
2)
O
processo de equilibração: a marcha do organismo em busca do pensamento lógico
Pode-se dizer que o "sujeito epistêmico"
protagoniza o papel central do modelo piagetiano, pois a grande preocupação da
teoria é desvendar os mecanismos processuais do pensamento do homem, desde o
início da sua vida até a idade adulta. Nesse sentido, a compreensão dos
mecanismos de constituição do conhecimento, na concepção de Piaget, equivale à
compreensão dos mecanismos envolvidos na formação do pensamento lógico,
matemático. Como lembra La Taille (1992:17), "(...) a lógica representa
para Piaget a forma final do equilíbrio das ações. Ela é 'um sistema de
operações, isto é, de ações que se tornaram reversíveis e passíveis de serem
compostas entre si'".
Precipuamente, portanto, no método
psicogenético, o 'status' da lógica matemática perfaz o enigma básico a ser
desvendado. O maior problema, nesse sentido, concentra-se na busca de respostas
pertinentes para uma questão fulcral: "Como os homens constróem o
conhecimento?" (La Taille: vídeo). Imbricam-se
nessa questão, naturalmente, outras indagações afins, quer sejam: como é que a
lógica passa do nível elementar para o nível superior? Como se dá o processo de
elaboração das idéias? Como a elaboração do conhecimento influencia a adaptação
à realidade? Etc.
Procurando soluções para esse problema central,
Piaget sustenta que a gênese do conhecimento está no próprio sujeito, ou seja,
o pensamento lógico não é inato ou tampouco externo ao organismo mas é fundamentalmente
construído na interação homem-objeto. Quer dizer, o desenvolvimento da
filogenia humana se dá através de um mecanismo auto-regulatório que tem como
base um 'kit' de condições biológicas (inatas portanto), que é ativado pela
ação e interação do organismo com o meio ambiente - físico e social
(Rappaport, op.cit.). Id est, tanto a experiência sensorial quanto o
raciocínio são fundantes do processo de constituição da inteligência, ou do
pensamento lógico do homem.
Está implícito nessa ótica de Piaget que o
homem é possuidor de uma estrutura biológica que o possibilita desenvolver o
mental, no entanto, esse fato per se não assegura o
desencadeamento de fatores que propiciarão o seu desenvolvimento, haja vista
que este só acontecerá a partir da interação do sujeito com o objeto a
conhecer. Por sua vez, a relação com o objeto, embora essencial, da mesma forma
também não é uma condição suficiente ao desenvolvimento cognitivo humano, uma
vez que para tanto é preciso, ainda, o exercício do raciocínio. Por assim
dizer, a elaboração do pensamento lógico demanda um processo interno de
reflexão. Tais aspectos deixam à mostra que, ao tentar descrever a origem da
constituição do pensamento lógico, Piaget focaliza o processo interno dessa
construção.
Simplificando ao máximo, o desenvolvimento humano,
no modelo piagetiano, é explicado segundo o pressuposto de que existe uma
conjuntura de relações interdependentes entre o sujeito conhecedor e o objeto a
conhecer. Esses fatores que são complementares envolvem mecanismos bastante
complexos e intrincados que englobam o entrelaçamento de fatores que são
complementares, tais como: o processo de maturação do organismo, a experiência
com objetos, a vivência social e, sobretudo, a equilibração do organismo ao
meio.
O conceito de equilibração torna-se especialmente
marcante na teoria de Piaget pois ele representa o fundamento que explica todo
o processo do desenvolvimento humano. Trata-se de um fenômeno que tem, em sua
essência, um caráter universal, já que é de igual ocorrência para todos os
indivíduos da espécie humana mas que pode sofrer variações em função de
conteúdos culturais do meio em que o indivíduo está inserido. Nessa linha de
raciocínio, o trabalho de Piaget leva em conta a atuação de 2 elementos
básicos ao desenvolvimento humano: os fatores invariantes e os fatores
variantes.
(a) Os fatores invariantes:
Piaget postula que, ao nascer, o indivíduo recebe como herança uma série de
estruturas biológicas - sensoriais e neurológicas - que permanecem constantes
ao longo da sua vida. São essas estruturas biológicas que irão predispor o
surgimento de certas estruturas mentais. Em vista disso, na linha piagetiana,
considera-se que o indivíduo carrega consigo duas marcas inatas que são a tendência
natural à organização e à adaptação, significando entender, portanto, que, em
última instância, o 'motor' do comportamento do homem é inerente ao ser.
(b) Os fatores variantes: são
representados pelo conceito de esquema que constitui a unidade básica de
pensamento e ação estrutural do modelo piagetiano, sendo um elemento que se
tranforma no processo de interação com o meio, visando à adaptação do indivíduo
ao real que o circunda. Com isso, a teoria psicogenética deixa à mostra que a
inteligência não é herdada, mas sim que ela é construída no processo interativo
entre o homem e o meio ambiente (físico e social) em que ele estiver inserido.
Em síntese, pode-se dizer que, para Piaget, o
equilíbrio é o norte que o organismo almeja mas que paradoxalmente nunca
alcança (La Taille, op.cit.), haja vista que no processo de interação podem
ocorrer desajustes do meio ambiente que rompem com o estado de equilíbrio do
organismo, eliciando esforços para que a adaptação se restabeleça. Essa busca
do organismo por novas formas de adaptação envolvem dois mecanismos que apesar
de distintos são indissociáveis e que se complementam: a assimilação e a
acomodação.
(a) A assimilação consiste na tentativa do
indivíduo em solucionar uma determinada situação a partir da estrutura
cognitiva que ele possui naquele momento específico da sua existência.
Representa um processo contínuo na medida em que o indivíduo está em constante
atividade de interpretação da realidade que o rodeia e, consequentemente, tendo
que se adaptar a ela. Como o processo de assimilação representa sempre uma
tentativa de integração de aspectos experienciais aos esquemas previamente
estruturados, ao entrar em contato com o objeto do conhecimento o indivíduo
busca retirar dele as informações que lhe interessam deixando outras que não
lhe são tão importantes (La Taille, vídeo), visando sempre a restabelecer a
equilibração do organismo.
(b) A acomodação, por sua vez, consiste na
capacidade de modificação da estrutura mental antiga para dar conta de dominar
um novo objeto do conhecimento. Quer dizer, a acomodação representa "o
momento da ação do objeto sobre o sujeito" (Freitas, op.cit.:65)
emergindo, portanto, como o elemento complementar das interações
sujeito-objeto. Em síntese, toda experiência é assimilada a uma
estrutura de idéias já existentes (esquemas) podendo provocar uma transformação
nesses esquemas, ou seja, gerando um processo de acomodação. Como
observa Rappaport (1981:56),
os processos de assimilação e acomodação são
complementares e acham-se presentes durante toda a vida do indivíduo e permitem
um estado de adaptação intelectual (...) É muito difícil, se não impossível,
imaginar uma situação em que possa ocorrer assimilação sem acomodação, pois
dificilmente um objeto é igual a outro já conhecido, ou uma situação é
exatamente igual a outra.
Vê-se nessa idéia de "equilibração" de
Piaget a marca da sua formação como Biólogo que o levou a traçar um paralelo
entre a evolução biológica da espécie e as construções cognitivas. Tal processo
pode ser representado pelo seguinte quadro:
|
Dessa perspectiva, o processo de equilibração pode ser definido como um
mecanismo de organização de estruturas cognitivas em um sistema coerente que
visa a levar o indivíduo a construção de uma forma de adaptação à realidade.
Haja vista que o "objeto nunca se deixa compreender totalmente" (La
Taille, op.cit.), o conceito de equilibração sugere algo móvel e dinâmico, na
medida em que a constituição do conhecimento coloca o indivíduo frente a
conflitos cognitivos constantes que movimentam o organismo no sentido de
resolvê-los. Em última instância, a concepção do desenvolvimento humano, na
linha piagetiana, deixa ver que é no contato com o mundo que a matéria bruta do
conhecimento é 'arrecadada', pois que é no processo de construções sucessivas
resultantes da relação sujeito-objeto que o indivíduo vai formar o pensamento
lógico.
É bom considerar, ainda, que, na medida em que toda
experiência leva em graus diferentes a um processo de assimilação e acomodação,
trata-se de entender que o mundo das idéias, da cognição, é um mundo
inferencial. Para avançar no desenvolvimento é preciso que o ambiente promova
condições para transformações cognitivas, id est, é necessário que
se estabeleça um conflito cognitivo que demande um esforço do indivíduo para superá-lo
a fim de que o equilíbrio do organismo seja restabelecido, e assim
sucessivamente.
No entanto, esse processo de transformação
vai depender sempre de como o indivíduo vai elaborar e assimilar as suas
interações com o meio, isso porque a visada conquista da equilibração do
organismo reflete as elaborações possibilitadas pelos níveis de desenvolvimento
cognitivo que o organismo detém nos diversos estágios da sua vida. A esse
respeito, para Piaget, os modos de relacionamento com a realidade são divididos
em 4 períodos, como destacaremos na próxima seção deste trabalho.
3)
Os
estágios do desenvolvimento humano
Piaget considera 4 períodos no processo evolutivo
da espécie humana que são caracterizados "por aquilo que o indivíduo
consegue fazer melhor" no decorrer das diversas faixas etárias ao longo do
seu processo de desenvolvimento (Furtado, op.cit.). São eles:
·
1º
período:
Sensório-motor
(0 a 2 anos)
·
2º
período:
Pré-operatório
(2 a 7 anos)
·
3º
período: Operações concretas (7 a 11 ou 12 anos)
·
4º
período: Operações formais (11
ou 12 anos em diante)
Cada uma dessas fases é caracterizada por formas
diferentes de organização mental que possibilitam as diferentes maneiras do
indivíduo relacionar-se com a realidade que o rodeia (Coll e Gillièron, 1987).
De uma forma geral, todos os indivíduos vivenciam essas 4 fases na mesma
seqüência, porém o início e o término de cada uma delas pode sofrer variações
em função das características da estrutura biológica de cada indivíduo e da
riqueza (ou não) dos estímulos proporcionados pelo meio ambiente em que ele
estiver inserido. Por isso mesmo é que "a divisão nessas faixas etárias é
uma referência, e não uma norma rígida", conforme lembra Furtado
(op.cit.). Abordaremos, a seguir, sem entrar em uma descrição detalhada, as
principais características de cada um desses períodos.
(a) Período Sensório-motor (0 a 2 anos):
segundo La Taille (2003), Piaget usa a expressão "a passagem do caos ao
cosmo" para traduzir o que o estudo sobre a construção do real descreve e
explica. De acordo com a tese piagetiana, "a criança nasce em um universo
para ela caótico, habitado por objetos evanescentes (que desapareceriam uma vez
fora do campo da percepção), com tempo e espaço subjetivamente sentidos, e
causalidade reduzida ao poder das ações, em uma forma de onipotência" (id
ibid). No recém nascido, portanto, as funções mentais limitam-se ao exercício
dos aparelhos reflexos inatos. Assim sendo, o universo que circunda a criança é
conquistado mediante a percepção e os movimentos (como a sucção, o movimento
dos olhos, por exemplo).
Progressivamente, a criança vai aperfeiçoando tais
movimentos reflexos e adquirindo habilidades e chega ao final do período
sensório-motor já se concebendo dentro de um cosmo "com objetos, tempo,
espaço, causalidade objetivados e solidários, entre os quais situa a si mesma
como um objeto específico, agente e paciente dos eventos que nele ocorrem"
(id ibid).
(b) Período pré-operatório (2 a 7 anos): para
Piaget, o que marca a passagem do período sensório-motor para o pré-operatório
é o aparecimento da função simbólica ou semiótica, ou seja, é a emergência da linguagem.
Nessa concepção, a inteligência é anterior à emergência da linguagem e por isso
mesmo "não se pode atribuir à linguagem a origem da lógica, que constitui
o núcleo do pensamento racional" (Coll e Gillièron, op.cit.). Na linha
piagetiana, desse modo, a linguagem é considerada como uma condição necessária
mas não suficiente ao desenvolvimento, pois existe um trabalho de reorganização
da ação cognitiva que não é dado pela linguagem, conforme alerta La Taille
(1992). Em uma palavra, isso implica entender que o desenvolvimento da
linguagem depende do desenvolvimento da inteligência.
Todavia, conforme demonstram as pesquisas
psicogenéticas (La Taille, op.cit.; Furtado, op.cit., etc.), a emergência da
linguagem acarreta modificações importantes em aspectos cognitivos, afetivos e
sociais da criança, uma vez que ela possibilita as interações
interindividuais e fornece, principalmente, a capacidade de trabalhar com
representações para atribuir significados à realidade. Tanto é assim, que a
aceleração do alcance do pensamento neste estágio do desenvolvimento, é
atribuída, em grande parte, às possibilidades de contatos interindividuais
fornecidos pela linguagem.
Contudo, embora o alcance do pensamento apresente
transformações importantes, ele caracteriza-se, ainda, pelo egocentrismo,
uma vez que a criança não concebe uma realidade da qual não faça parte, devido
à ausência de esquemas conceituais e da lógica. Para citar um exemplo pessoal
relacionado à questão, lembro-me muito bem que me chamava à atenção o fato de,
nessa faixa etária, o meu filho dizer coisas do tipo "o meu carro do meu
pai", sugerindo, portanto, o egocentrismo característico desta fase do
desenvolvimento. Assim, neste estágio, embora a criança apresente a capacidade
de atuar de forma lógica e coerente (em função da aquisição de esquemas
sensoriais-motores na fase anterior) ela apresentará, paradoxalmente, um
entendimento da realidade desequilibrado (em função da ausência de esquemas
conceituais), conforme salienta Rappaport (op.cit.).
(c) Período das operações concretas (7 a
11, 12 anos): neste período o egocentrismo intelectual e social
(incapacidade de se colocar no ponto de vista de outros) que caracteriza a fase
anterior dá lugar à emergência da capacidade da criança de estabelecer relações
e coordenar pontos de vista diferentes (próprios e de outrem ) e de
integrá-los de modo lógico e coerente (Rappaport, op.cit.). Um outro aspecto
importante neste estágio refere-se ao aparecimento da capacidade da criança de
interiorizar as ações, ou seja, ela começa a realizar operações mentalmente e
não mais apenas através de ações físicas típicas da inteligência sensório-motor
(se lhe perguntarem, por exemplo, qual é a vareta maior, entre várias, ela será
capaz de responder acertadamente comparando-as mediante a ação mental, ou seja,
sem precisar medi-las usando a ação física).
Contudo, embora a criança consiga raciocinar
de forma coerente, tanto os esquemas conceituais como as ações executadas
mentalmente se referem, nesta fase, a objetos ou situações passíveis de serem
manipuladas ou imaginadas de forma concreta. Além disso, conforme pontua La
Taille (1992:17) se no período pré-operatório a criança ainda não havia
adquirido a capacidade de reversibilidade, i.e., "a capacidade de pensar
simultaneamente o estado inicial e o estado final de alguma transformação
efetuada sobre os objetos (por exemplo, a ausência de conservação da quantidade
quando se transvaza o conteúdo de um copo A para outro B, de diâmetro
menor)", tal reversibilidade será construída ao longo dos estágios
operatório concreto e formal.
(d) Período das operações formais (12 anos em
diante): nesta fase a criança, ampliando as capacidades conquistadas na
fase anterior, já consegue raciocinar sobre hipóteses na medida em que ela é
capaz de formar esquemas conceituais abstratos e através deles executar
operações mentais dentro de princípios da lógica formal. Com isso, conforme
aponta Rappaport (op.cit.:74) a criança adquire "capacidade de criticar os
sistemas sociais e propor novos códigos de conduta: discute valores morais de
seus pais e contrói os seus próprios (adquirindo, portanto, autonomia)".
De acordo com a tese piagetiana, ao atingir esta
fase, o indivíduo adquire a sua forma final de equilíbrio, ou seja, ele
consegue alcançar o padrão intelectual que persistirá durante a idade adulta.
Isso não quer dizer que ocorra uma estagnação das funções cognitivas, a partir
do ápice adquirido na adolescência, como enfatiza Rappaport (op.cit.:63),
"esta será a forma predominante de raciocínio utilizada pelo adulto. Seu
desenvolvimento posterior consistirá numa ampliação de conhecimentos tanto em
extensão como em profundidade, mas não na aquisição de novos modos de
funcionamento mental".
Cabe-nos problematizar as considerações anteriores
de Rappaport, a partir da seguinte reflexão: resultados de pesquisas*
têm indicado que adultos "pouco-letrados/escolarizados" apresentam
modo de funcionamento cognitivo "balizado pelas informações provenientes
de dados perceptuais, do contexto concreto e da experiência pessoal"
(Oliveira, 2001a:148). De acordo com os pressupostos da teoria de Piaget, tais
adultos estariam, portanto, no estágio operatório-concreto, ou seja, não teriam
alcançado, ainda, o estágio final do desenvolvimento que caracteriza o
funcionamento do adulto (lógico-formal). Como é que tais adultos
(operatório-concreto) poderiam, ainda, adquirir condições de ampliar e
aprofundar conhecimentos (lógico-formal) se não lhes é reservada, de acordo com
a respectiva teoria, a capacidade de desenvolver "novos modos de
funcionamento mental"? - aliás, de acordo com a teoria, não dependeria do
desenvolvimento da estrutura cognitiva a capacidade de desenvolver o pensamento
descontextualizado?
Bem, retomando a nossa
discussão, vale ressaltar, ainda, que, para Piaget, existe um desenvolvimento
da moral que ocorre por etapas, de acordo com os estágios do
desenvolvimento humano. Para Piaget (1977 apud La Taille 1992:21), "toda
moral consiste num sistema de regras e a essência de toda moralidade deve ser
procurada no respeito que o indivíduo adquire por estas regras". Isso
porque Piaget entende que nos jogos coletivos as relações interindividuais são
regidas por normas que, apesar de herdadas culturalmente, podem ser modificadas
consensualmente entre os jogadores, sendo que o dever de 'respeitá-las' implica
a moral por envolver questões de justiça e honestidade.
Assim sendo, Piaget argumenta que o
desenvolvimento da moral abrange 3 fases: (a) anomia (crianças até 5
anos), em que a moral não se coloca, ou seja, as regras são seguidas, porém o
indivíduo ainda não está mobilizado pelas relações bem x mal e sim pelo sentido
de hábito, de dever; (b) heteronomia (crianças até 9, 10 anos de idade),
em que a moral é = a autoridade, ou seja, as regras não correpondem a um
acordo mútuo firmado entre os jogadores, mas sim como algo imposto pela
tradição e, portanto, imutável; (c) autonomia, corresponde ao último
estágio do desenvolvimento da moral, em que há a legitimação das regras e a
criança pensa a moral pela reciprocidade, quer seja o respeito a regras é
entendido como decorrente de acordos mútuos entre os jogadores, sendo que cada
um deles consegue conceber a si próprio como possível 'legislador' em regime de
cooperação entre todos os membros do grupo.
Para Piaget, a própria moral pressupõe
inteligência, haja vista que as relações entre moral x inteligência têm a mesma
lógica atribuída às relações inteligência x linguagem. Quer dizer, a
inteligência é uma condição necessária, porém não suficiente ao desenvolvimento
da moral. Nesse sentido, a moralidade implica pensar o racional, em 3
dimensões: a) regras: que são formulações verbais concretas, explícitas (como
os 10 Mandamentos, por exemplo); b) princípios: que representam o espírito das
regras (amai-vos uns aos outros, por exemplo); c) valores: que dão respostas aos
deveres e aos sentidos da vida, permitindo entender de onde são derivados os
princípios das regras a serem seguidas.
Assim sendo, as relações interindividuais que são
regidas por regras envolvem, por sua vez, relações de coação - que corresponde
à noção de dever; e de cooperação - que pressupõe a noção de articulação
de operações de dois ou mais sujeitos, envolvendo não apenas a noção de 'dever'
mas a de 'querer' fazer. Vemos, portanto, que uma das peculiaridades do modelo
piagetiano consiste em que o papel das relações interindividuais no processo
evolutivo do homem é focalizado sob a perspectiva da ética (La Taille,
1992). Isso implica entender que "o desenvolvimento cognitivo é condição
necessária ao pleno exercício da cooperação, mas não condição suficiente, pois
uma postura ética deverá completar o quadro" (idem p. 21).
4) As conseqüências do modelo
piagetiano para a ação pedagógica
Como já foi mencionado na apresentação deste
trabalho, a teoria psicogenética de Piaget não tinha como objetivo principal
propor uma teoria de aprendizagem. A esse respeito, Coll (1992:172) faz a
seguinte observação: "ao que se sabe, ele [Piaget] nunca participou
diretamente nem coordenou uma pesquisa com objetivos pedagógicos". Não
obstante esse fato, de forma contraditória aos interesses previstos, portanto,
o modelo piagetiano, curiosamente, veio a se tornar uma das mais importantes
diretrizes no campo da aprendizagem escolar, por exemplo, nos USA, na
Europa e no Brasil, inclusive.
De acordo com Coll (op.cit.) as tentativas de
aplicação da teoria genética no campo da aprendizagem são numerosas e variadas,
no entanto os resultados práticos obtidos com tais aplicações não podem ser
considerados tão frutíferos. Uma das razões da difícil penetração da teoria
genética no âmbito da escola deve-se, principalmente, segundo o autor, "ao
difícil entendimento do seu conteúdo conceitual como pelos método de análise
formalizante que utiliza e pelo estilo às vezes 'hermético' que caracteriza as
publicações de Piaget" (idem p. 174). Coll (op.cit.) ressalta, também, que
a aplicação educacional da teoria genética tem como fatores complicadores,
entre outros: a) as dificuldades de ordem técnica, metodológicas e teóricas no
uso de provas operatórias como instrumento de diagnóstico psicopedagógico,
exigindo um alto grau de especialização e de prudência profissional, a fim de
se evitar os riscos de sérios erros; b) a predominância no
"como" ensinar coloca o objetivo do "o quê" ensinar em
segundo plano, contrapondo-se, dessa forma, ao caráter fundamental de
transmissão do saber acumulado culturalmente que é uma função da instituição
escolar, por ser esta de caráter preeminentemente político-metodológico e não
técnico como tradicionalmente se procurou incutir nas idéias da sociedade; c) a
parte social da escola fica prejudicada uma vez que o raciocínio por trás da
argumentação de que a criança vai atingir o estágio operatório secundariza a
noção do desenvolvimento do pensamento crítico; d) a idéia básica do
construtivismo postulando que a atividade de organização e planificação da
aquisição de conhecimentos estão à cargo do aluno acaba por não dar conta de
explicar o caráter da intervenção por parte do professor; e) a idéia de que o
indivíduo apropria os conteúdos em conformidade com o desenvolvimento das
suas estruturas cognitivas estabelece o desafio da descoberta do "grau
ótimo de desequilíbrio", ou seja, o objeto a conhecer não deve estar
nem além nem aquém da capacidade do aprendiz conhecedor.
Por outro lado, como contribuições contundentes da
teoria psicogenética podem ser citados, por exemplo: a) a possibilidade de
estabelecer objetivos educacionais uma vez que a teoria fornece parâmetros
importantes sobre o 'processo de pensamento da criança' relacionados aos
estádios do desenvolvimento; b) em oposição às visões de teorias behavioristas
que consideravam o erro como interferências negativas no processo de
aprendizagem, dentro da concepção cognitivista da teoria psicogenética, os
erros passam a ser entendidos como estratégias usadas pelo aluno na sua
tentativa de aprendizagem de novos conhecimentos (PCN, 1998); c) uma outra
contribuição importante do enfoque psicogenético foi lançar luz à questão dos
diferentes estilos individuais de aprendizagem; (PCN, 1998); entre outros.
Em resumo, conforme aponta Coll (1992), as relações
entre teoria psicogenética x educação, apesar dos complicadores decorrentes da
"dicotomia entre os aspectos estruturais e os aspectos funcionais da
explicação genética" (idem, p. 192) e da tendência dos projetos privilegiarem,
em grande parte, um reducionismo psicologizante em detrimento ao social
(aliás, motivo de caloroso debate entre acadêmicos*),
pode-se considerar que a teoria psicogenética trouxe contribuições importantes
ao campo da aprendizagem escolar.
5. Considerações finais
A referência deste nosso estudo foi a teoria de
Piaget cujas proposições nucleares dão conta de que a compreensão do
desenvolvimento humano equivale à compreensão de como se dá o processo de
constituição do pensamento lógico-formal, matemático. Tal processo, que é
explicado segundo o pressuposto de que existe uma conjuntura de relações
interdependentes entre o sujeito conhecedor e o objeto a conhecer, envolve
mecanismos complexos e intrincados que englobam aspectos que se entrelaçam e se
complementam, tais como: o processo de maturação do organismo, a experiência
com objetos, a vivência social e, sobretudo, a equilibração do organismo ao
meio.
Em face às discussões apresentadas no decorrer do
trabalho, cremos ser lícito concluir que as idéias de Piaget representam um
salto qualitativo na compreensão do desenvolvimento humano, na medida em que é
evidenciada uma tentativa de integração entre o sujeito e o mundo que o
circunda. Paradoxalmente, contudo - no que pese a rejeição de Piaget pelo
antagonismo das tendências objetivista e subjetivista - o papel do meio
no funcionamento do indivíduo é relegado a um plano secundário, uma vez que
permanece, ainda, a predominância do indivíduo em detrimento das influências
que o meio exerce na construção do seu conhecimento.
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